quinta-feira, 26 de abril de 2012

O Poeta é um fingidor



Tenho Tanto Sentimento

Tenho tanto sentimento
Que é frequente persuadir-me
De que sou sentimental,
Mas reconheço, ao medir-me,
Que tudo isso é pensamento,
Que não senti afinal.

Temos, todos que vivemos,
Uma vida que é vivida
E outra vida que é pensada,
E a única vida que temos
É essa que é dividida
Entre a verdadeira e a errada.

Qual porém é a verdadeira
E qual errada, ninguém
Nos saberá explicar;
E vivemos de maneira
Que a vida que a gente tem
É a que tem que pensar.



Análise do poema "tenho tanto sentimento"



O poema que se inicia com "Tenho tanto sentimento", é um poema ortónimo tardio de Fernando Pessoa, escrito em 19/9/1933.

Fernando Pessoa ficou conhecido, mesmo já entre os seus contemporâneos, como um poeta iminentemente racional, frio, regido pela inteligência. E é na sua poesia ortónima (escrita em seu próprio nome) que mais transparece esta mesma lógica. Os poemas ortónimos são, em regra, os poemas mais rígidos de Pessoa, e nos quais a emoção entra menos, sendo dada uma grande prevalência à economia de palavras e ao uso regrado das figuras de estilo.


Mas isto não quer dizer que Pessoa seja sempre racional - e que esteja certo aquele raciocínio anterior. Há que recordar o que o próprio Pessoa disse sobre a sua escrita ortónima (da famosa carta a Casais Monteiro onde ele fala sobre os heterónimos):


"(...) pus no Caeiro todo o meu poder de despersonalização dramática, pus em Ricardo Reis toda a minha disciplina mental, vestida da música que lhe é própria, pus em Álvaro de Campos toda a emoção que não dou nem a mim nem à vida. Pensar, meu querido Casais Monteiro, que todos estes têm que ser, na prática da publicação, preteridos pelo Fernando Pessoa., impuro e simples!"


Ou seja, Pessoa ortónimo era o "resto", o que sobrava dos outros, sendo que a despersonalização era exercida ao máximo em Caeiro, a disciplina tinha ido toda para Reis e a emoção toda para Campos. Pessoa-ele-próprio ficava, "impuro e simples". E é assim que devem ser lidos os seus poemas ortónimos, que estão constrangidos pela necessidade de não ultrapassarem esses limites da simplicidade imanente. É pois diferente para o Pessoa ortónimo analisar o que é o sentimento, ou para Álvaro de Campos fazer o mesmo. É mais fácil o ortónimo negar que é dominado pelo sentimento, pela emoção, do que o heterónimo engenheiro. Veremos aliás que Campos muito mais facilmente explica tudo pela emoção - é o extremo oposto do ortónimo no que à emoção diz respeito.


Mas passemos à análise estrofe a estrofe do poema propriamente dito.


Tenho tanto sentimento
Que é frequente persuadir-me
De que sou sentimental,
Mas reconheço, ao medir-me,
Que tudo isso é pensamento,
Que não senti afinal.


Nesta primeira estrofe vemos uma confirmação do que dizíamos anteriormente. A primeira sensação de Pessoa é que ele é essencialmente um emocional. Álvaro de Campos ficar-se-ia por essa primeira sensação, sendo essencialmente um intuitivo. Mas Pessoa ortónimo é, essencialmente, um contra-intuitivo, é um racional. Portanto a sua escrita tende a recusar a primeira sensação e a ter de analisar ao pormenor tudo o que sente. E, geralmente, tudo o que é sobre-analisado tende a ser destruído. É isso mesmo que ele faz, ao justificar o "tanto sentimento" apenas enquanto "pensamento, / Que não senti afinal". Esta é realmente uma racionalização ao melhor estilo Pessoano.


Mas há que reconhecer que esta racionalização não é, ela mesma, puramente intelectual. Se, por um lado, a escrita ortónima é a mais "seca", a mais "despida", também se torna por vezes a mais sincera. Podemos ver nesta estrofe que Pessoa provavelmente racionaliza a sua emoção para se proteger dos efeitos dela. A racionalização será, ao longo da sua vida, uma das armas que ele utiliza para lidar com a sua solidão e com os momentos mais negativos.


Temos, todos que vivemos,
Uma vida que é vivida
E outra vida que é pensada,
E a única vida que temos
É essa que é dividida
Entre a verdadeira e a errada.


Embora seja, em certa medida, uma verdade evidente - essa verdade da nossa vida se dividir entre a realidade concreta e o que nós pensamos sobre essa realidade; podemos ver que a racionalização continua, na segunda metade do poema. É o mesmo que ele escrevesse que é impossível considerar que toda a vida é feita de sofrimento, e que a vida real tem menos sofrimento do que nós pensamos, pois o sofrimento extra é imposto por nós próprios. E a vida "errada" é a que pensa a realidade e a que transforma a realidade em mais sofrimento. Trata-se quase de uma visão natural da vida, à maneira de Caeiro, pretendendo expulsar da mente humana a reflexão sobre a realidade, aceitando apenas a "vida vivida" e não a "vida pensada". Mas é claramente uma ilusão racional, pois Pessoa continua a pensar, mesmo recusando o pensamento.

Qual porém é verdadeira
E qual errada, ninguém
Nos saberá explicar;
E vivemos de maneira
Que a vida que a gente tem
É a que tem que pensar.

A confirmação disso mesmo - de que não é Caeiro que escreve, é bem visível na última estrofe. Pessoa confessa que é impossível saber qual é a vida real, se a "vivida" se a "pensada". Caeiro não teria dúvidas, pois para ele todo o pensamento deveria ser evitado. Mas Fernando Pessoa não é só "feito" de Alberto Caeiro. E neste caso, vemos que "vence" o Pessoa racional, o Pessoa ortónimo, que dá prevalência ao pensamento face à percepção pura dos sentidos. No final do poema Pessoa aceita que, na impossibilidade de sabermos qual é a vida verdadeira, teremos de aceitar pensar a vida. É a aceitação de que a racionalização da vida é a nossa melhor opção, sobretudo para não nos deixarmos dominar pelo sentimento. E esta é, afinal e verdadeiramente, uma opção que só o Pessoa ortónimo tomaria de tão bom grado.

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