quarta-feira, 9 de março de 2011

O Poeta é um fingidor



A Noite É Muito Escura


É noite. A noite é muito escura. Numa casa a uma grande distância
Brilha a luz duma janela.
Vejo-a, e sinto-me humano dos pés à cabeça.
É curioso que toda a vida do indivíduo que ali mora, e que não sei quem é,
Atrai-me só por essa luz vista de longe.
Sem dúvida que a vida dele é real e ele tem cara, gestos, família e profissão.


Mas agora só me importa a luz da janela dele.
Apesar de a luz estar ali por ele a ter acendido,
A luz é a realidade imediata para mim.
Eu nunca passo para além da realidade imediata.
Para além da realidade imediata não há nada.
Se eu, de onde estou, só veio aquela luz,
Em relação à distância onde estou há só aquela luz.
O homem e a família dele são reais do lado de lá da janela.
Eu estou do lado de cá, a uma grande distância.
A luz apagou-se.
Que me importa que o homem continue a existir?



Análise ao Poema


O poema que se inicia com "É noite. A noite é muito escura", é um poema de Alberto Caeiro, datado de 8/11/1915 e que pertence aos "Poemas Inconjuntos"; uma série de poemas datados entre 1914 e 1930 que se distingue do corpo do livro do "Guardador de Rebanhos".
Os "Poemas Inconjuntos" são, por assim dizer, poemas órfãos, que não entram no raciocínio perfeito e alinhado do "Guardador de Rebanhos". São poemas desgarrados e que só perfazem um conjunto pela sua própria diferenciação em relação aos restantes. Há um outro conjunto de poemas órfãos, o conjunto "Pastor Amoroso" (nome dado por Pessoa) que se distingue dos "Poemas Inconjuntos" por ter uma temática muito própria e por nos mostrar Caeiro enquanto poeta escritor de poemas de amor. Pessoa deu um título aos poemas do conjunto do "Pastor Amoroso", mas foi Reis – seguidor de Caeiro – que deu o nome "Poemas Inconjuntos" aos restantes, colocando-os obviamente numa posição acessória, quer aos poemas do "Guardador de Rebanhos” quer aos poemas do “Pastor Amoroso”.


Mas os "Poemas Inconjuntos" são, muitos deles, poemas escritos na mesma época dos poemas do "Guardador de Rebanhos". O poema em análise é disso mesmo um claro exemplo. Trata-se de um poema em que aparecem muitos dos temas principais tratados por Alberto Caeiro, sendo apenas um poema que não se enquadra na mesma lógica do "Guardador", por provavelmente ser um poema episódico, sem continuidade necessária; e por isso mesmo desgarrado. Mas é certamente um poema escrito nas mesmas circunstâncias dos outros, e um poema inicial de Caeiro (pela data aposta nele), pelo que será assim que ele terá de ser analisado.
Comecemos pela paisagem do poema. O poeta olha, de noite, uma luz numa casa distante. A princípio ele olha a luz da janela e compreende instintivamente que a luz representa a presença de alguém naquela casa, de uma outra vida. É essa semelhança a si próprio que o faz "sentir-se humano dos pés à cabeça". Mas apenas momentaneamente. Pois se Caeiro olha a luz e é levado a compreender a presença humana por detrás da luz, logo de seguida ele percebe que na realidade ele não quer pensar na existência da luz, mas apenas contemplá-la enquanto luz à distância.
Ver a luz apenas enquanto luz – e não enquanto um símbolo ou um objecto ideal intermédio entre a luz e a presença humana na casa, revela-nos em essência o que de mais importante reside no pensamento filosófico de Alberto Caeiro: ele é um objectivista. Ele diz, no "Guardador de Rebanhos": "Penso com os olhos e com os ouvidos / E com as mãos e com os pés / E com o nariz e a boca” (poema IX).


O que é "pensar com os olhos"? Pensar com os olhos é aceitar simplesmente o que recebemos dos nossos sentidos, sem sentirmos necessidade de pensar nisso. Pensar com os olhos é apenas ver, sem ter necessidade de pensar. Para Caeiro basta-lhe o que os seus olhos vêem – é assim ser natural, é assim que a Natureza funciona. Apenas os homens insistem em ir para além da Natureza, e Caeiro pretende um regresso ao "ser natural", um regresso à simplicidade, à "realidade imediata"; porque "para além da realidade imediata não há nada", diz-nos ele neste poema que agora analisamos.


Tanto é assim que, quando a luz se apaga, também se apaga o interesse de Caeiro. Porquê? Porque ele olhava a luz e não o que a luz significava (a presença humana, da família).
Todo o poema é uma metáfora para o engano que é pensar nas coisas, quando podemos simplesmente observá-las. Os homens, ao verem a luz na janela, nunca conseguem só ver a luz na janela, querem pensar em quem a acendeu e a quem pertence a luz e porque a luz existe, acesa, naquele instante. O exemplo da luz serve para tudo o resto – os homens querem sempre compreender o porquê das coisas, mesmo que as coisas possam não ter um porquê. As luzes acesas são afinal tudo o que vemos, tudo o que ouvimos, tudo o que sentimos e querer compreender o porquê da luz, é querer compreender o porquê de todas as coisas, quando as coisas não têm (para Caeiro) um porquê que seja acessível à compreensão humana.
"Pensar é estar doente dos olhos", diz Caeiro no poema II do "Guardador de Rebanhos. Este poema é um exemplo disso mesmo, de como não devemos ir além do que vemos, porque essa já é toda a realidade e o resto, o pensar na realidade que vemos, é apenas "estar doente".

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