sexta-feira, 4 de março de 2011

O Poeta é um fingidor


Estou Cansado

Estou cansado, é claro,
Porque, a certa altura, a gente tem que estar cansado.
De que estou cansado, não sei:
De nada me serviria sabê-lo,
Pois o cansaço fica na mesma.
A ferida dói como dói
E não em função da causa que a produziu.
Sim, estou cansado,
E um pouco sorridente
De o cansaço ser só isto —
Uma vontade de sono no corpo,
Um desejo de não pensar na alma,
E por cima de tudo uma transparência lúcida
Do entendimento retrospectivo...
E a luxúria única de não ter já esperanças?
Sou inteligente; eis tudo.
Tenho visto muito e entendido muito o que tenho visto,
E há um certo prazer até no cansaço que isto nos dá,
Que afinal a cabeça sempre serve para qualquer coisa.

Análise do Poema


O poema em questão enquadra-se na terceira fase de Álvaro de Campos – a fase pessimista, onde o poeta encara mais a frio a realidade da sua vida, depois das duas fases anteriores (a decandentista e a futurista), onde ainda era dominado por um sentimento de grande esperança, mesmo que diluída.
O tema do cansaço é um tema recorrente nesta fase e um tema que domina literalmente muitos dos poemas de Campos. Podemos recordar-nos rapidamente de alguns: "O que há em mim é sobretudo cansaço"; "Eu, eu mesmo... Cheio de todos os cansaços..."; "Não, não é cansaço", entre outros.
Cansaço afinal de quê? Pensamos que cansaço de viver, mas sobretudo cansaço de viver uma vida que nunca se assemelha à vida que o poeta imagina que podia ser a sua. Ele vive uma vida simples, precária, doente, sem fama ou glória, e sobretudo sem ter atingido nenhum dos seus objectivos principais. Ele (Pessoa) que abdicou da vida normal, do amor, em favor da sua obra, da sua escrita, encontra-se cada vez mais sozinho, cada vez mais abandonado, cada vez mais à beira da loucura, e sobretudo encontra-se cada vez mais longe de onde imaginara poder estar.
Este desencantamento com a vida é uma marca forte da poesia tardia de Pessoa. E diz-nos muito do que ele sentia, diz-nos imensamente sobre o que ele sofria com o seu quotidiano - um dia-a-dia feito de coisas originais, de pesquisas profundas, mas que progressivamente se esgotava com o tempo e não dava frutos visíveis.
Neste poema que agora analisamos o desencantamento aparece afinal como súmula do tema principal. Não é só tristeza, é desilusão, falta de esperança, nada.
Estou cansado: é uma constatação fria da sua condição actual. E é uma constatação que não deixa lugar à mudança, apenas um sorriso triste ("um pouco sorridente"). Sorriso triste ele mesmo de consciência do fim de estrada, de resolução, de inevitabilidade. O curso da sua vida termina nesta conclusão a preto e branco. Sem esperança mas ainda lúcido e inteligente, Campos lança uma visão geral sobre a sua vida e diz-nos o que vê, sem entoação na sua voz.
Os recursos estilísticos que usa, são em favor deste ciclo fechado e doente: as repetições, as aliterações, as interrogações indefinidas...
A sua "cabeça", a sua mente, agora serve-lhe apenas para esta retrospecção triste e apagada, para mais nada.

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