domingo, 30 de janeiro de 2011

O Poeta é um fingidor.



O ANDAIME

O tempo que eu hei sonhado
Quantos anos foi de vida!
Ah, quanto do meu passado
Foi só a vida mentida
De um futuro imaginado!


Aqui à beira do rio
Sossego sem ter razão.
Este seu correr vazio
Figura, anônimo e frio,
A vida vivida em vão.


A 'sp'rança que pouco alcança!
Que desejo vale o ensejo?
E uma bola de criança
Sobre mais que minha 's'prança,
Rola mais que o meu desejo.


Ondas do rio, tão leves
Que não sois ondas sequer,
Horas, dias, anos, breves
Passam - verduras ou neves
Que o mesmo sol faz morrer.


Gastei tudo que não tinha.
Sou mais velho do que sou.
A ilusão, que me mantinha,
Só no palco era rainha:
Despiu-se, e o reino acabou.


Leve som das águas lentas,
Gulosas da margem ida,
Que lembranças sonolentas
De esperanças nevoentas!
Que sonhos o sonho e a vida!


Que fiz de mim? Encontrei-me
Quando estava já perdido.
Impaciente deixei-me
Como a um louco que teime
No que lhe foi desmentido.


Som morto das águas mansas
Que correm por ter que ser,
Leva não só lembranças -
Mortas, porque hão de morrer.


Sou já o morto futuro.
Só um sonho me liga a mim -
O sonho atrasado e obscuro
Do que eu devera ser - muro
Do meu deserto jardim.


Ondas passadas, levai-me
Para o alvido do mar!
Ao que não serei legai-me,
Que cerquei com um andaime
A casa por fabricar.




O poema "O Andaime", é um poema ortónimo de Fernando Pessoa, sem data, mas publicado em 1931 na revista Presença.
Trata-se de um poema tardio (Pessoa morreria em 1935) e um poema muito curioso, pela sua hábil construção formal.
Sabemos bem que a poesia ortónima tem por essência uma grande simplicidade formal e estilística, mas este poema parece querer ir para além dessas limitações dentro mesmo dessa simplicidade. Isso é óbvio desde logo pelo título e pela "magreza" das estrofes - quase que parece que Pessoa quer, visualmente, dar-nos a impressão do andaime, antes mesmo de lermos o poema, na forma como o construiu magro e longo.
Porquê "O Andaime"? Apenas o vamos saber no final do poema. Porque no início, o poeta fala-nos de um tema querido à sua poesia ortónima: a reflexão na sua infância, no seu passado, no que foi imaginado mas nunca foi realizado no concreto. É a batalha eterna entre o subjetivo e o objetivo, entre o sonho e a ação, entre o desejado e o realizado.
Pessoa lamenta-se mesmo no início dos anos que terá perdido com esses sonhos. Tantos anos de vida perdidos. "A vida mentida / De um futuro imaginado". E é o rio que ele vê que acaba por representar em símbolo essa vida que corre mas que não significa nada em si mesma. O "correr do rio" é o correr da vida, um "correr vazio (...) anónimo e frio". A natureza (o Tempo) passa como as ondas do rio, e nada acontece de real. É tudo vazio e sem significado.
A ilusão (o sonho) de Pessoa nunca se concretizou. Ficou só no palco, como ele nos diz, e nunca saiu dele para a vida exterior. Quando a ilusão acabou, quando o sonho finalmente ruiu perante a pobre realidade, tudo acabou, toda a ilusão foi desvendada e destruída ("Despiu-se, e o reino acabou").
Há uma ligeira impressão que Pessoa nos quer dizer que em determinado período da sua vida ele sabia que nada do seu sonho se iria realizar, e que ele, como um louco que não aceita o que lhe é dito como verdade, se recusou a acreditar: "Encontrei-me / Quando já estava perdido", poderá quer dizer isso mesmo; que ele sabia a certo ponto que tudo tinha falhado, mas que ele teve de recusar acreditar nisso para não enlouquecer.
A realidade agora é que ele não vê um futuro para si próprio. O rio continuará a correr, mas para quê? Mais vale que lhe leve as esperanças e o futuro. "Só um sonho me liga a mim" - diz-nos ele. E o que ele diz é que esse sonho é a memória do seu passado. Apenas isso impede que tudo se dilua na irrealidade. Mas ao mesmo tempo esse passado não quer dizer nada - é uma ilusão vazia, um paradoxo.
Esse paradoxo é finalmente revelado num símbolo: o andaime que cerca a casa por fabricar. O andaime serão os sonhos e a casa a vida que Pessoa nunca conseguiu erguer em volta dos seus sonhos.

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